O capitJoão Dias – benfeitor da
Santa Casa da Misericórdia de Esposende
João Dias era natural de S. Cláudio de Curvos em cuja igreja foi baptizado
pelo padre Francisco Alves do Lago, a dezanove de Junho de 1675. Filho de Frutuoso Dias e de Marta Francisca,
teve como padrinho Domingos Dias Vasco. Casou com Antónia Francisca de Almeida,
uma baiana de ascendência portuguesa com raízes em Penafiel, que morava na
freguesia de Nossa Senhora da Assunção de Camamu, em S. Salvador da Baía. Foi
Familiar do Santo Ofício e teve um filho, Domingos Dias de Almeida, que também se
habilitou a membro daquela Congregação em 15-09-1738.[i]
Domingos morava perto, em Santa Vera Cruz, na ilha de Itaparica, local onde se
verificou o último desembarque de escravos naquela região, já depois de o mesmo
ter sido proibido. Nesse desembarque precipitado, houve muitos afogados e outros,
já em terra, sucumbiram à fome e ao cansaço, depois de obrigados a correr para
fugir das autoridades. De 500, apenas sobreviveram 285.[ii]
Os negócios de João Dias, também eles ligados ao tráfico de escravos, levaram-no
a assentar arraiais na freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Praia. Senhor
de largas posses, foi a partir daí que manteve estreita relação material e
espiritual com a Santa Casa da Misericórdia de Esposende, a quem fez várias
ofertas (esmolas),em troca da celebração de actos religiosos por suas
intenções. João Dias aparece várias vezes referenciado nos livros da Instituição
como Capitão, não se especificando se do mar, se de terra.
A primeira dádiva de João Dias à Santa Casa, foi um rico paramento
confeccionado em Lisboa, para ser utilizado em ocasiões solenes, um Pontifical,
pois, numa reunião do Cabido, havida em 24 de Julho de 1729, foi acordado que
«era conveniente que viesse por terra, pelo correio, o Pontifical da cidade de
Lisboa, que mandou fazer o Capitão João Dias, morador na cidade da Baía, por
ser coisa de grande empenho e se temer que por mar, correria algum risco». A
preocupação com o seu transporte, demonstra bem a importância e a qualidade da
obra oferecida.
Passados quase dois anos, no dia 26 de Abril de 1732, na mesma sala, onde
se encontravam reunidos o Provedor, os irmãos da Mesa e o Procurador de João Dias,
foi aberta uma carta, em que este reclamava que não tinham sido mandadas dizer
três missas de Natal por sua intenção e outras três, no mesmo dia, por intenção
de sua mulher. A explicação foi dada, de pronto, ao Procurador e prometido que
dali em diante, as ditas 6 missas «seriam ditas no dia de Natal, atendendo às
benfeitorias que o capitão João Dias tem prestado a esta Casa». Na mesma carta,
João Dias dizia ainda que o Provedor e mais Irmãos, lhe haviam mandado pedir “pau
de jacarandá”, para se fazerem umas grades para a Capela do Senhor da Praça e
juntamente «para um andor do Senhor dos Passos» mas que, na sua opinião, «era
melhor fazerem-se na cidade da Baía para o que mandassem desta Santa Casa, as
medidas para as ditas grades e andor» [iii].
E assim foi feito.
Muito pouco tempo depois, o capitão João Dias, confirmava, através de carta
chegada na frota da Baía e aberta em 24 de Junho de 1732, que iria mandar “ uma
grade de pau-preto para a Capela do Bom Jesus da Praça e mais seis varas para o
pálio do mesmo pau”. Foi portador de tal carta o capitão João de Barros
Ribeiro, que além do mencionado, ainda teria de entregar “uma dúzia de ramos de
pena”, que completariam o desejo e a devoção do remetente, “logo ao depois da
grade assentada”. Em troca desta benfeitoria, o capitão João Dias, pedia que
lhe mandassem celebrar, “cinco capelas de Missas e quatro ofícios”.
Esta magnífica grade, uma requintada obra de arte da marcenaria daquele
tempo é precisamente aquela que se encontra ainda hoje em frente da Capela do
Senhor dos Mareantes, antigamente chamado “Bom Jesus da Praça”. Podemos, ao
contemplá-la, dizer com segurança, que foi feita no Brasil, na Baía e que fez
281 anos, oficialmente, ontem, 24 de Junho, dia de S. João!
O andor, esse, chegou um pouco mais tarde. É uma acta da reunião do Cabido,
de 8 de Dezembro de 1736, que nos diz que o capitão João Dias, «tinha remetido
para esta Santa Casa, um andor de pau-brasil, com sua coberta de tela roxa e
entretecida de ouro, com os seus ramos do mesmo ouro e com franja em rodas de
ouro grandes» A carta dizia ainda, que este benfeitor enviara ainda mais seis
mil e quatrocentos reis, que Lourenço Pereira, de Lisboa, devia remeter à Santa
Casa para pagamento dos ornatos do referido andor. Não falava do seu custo, pois
«queria lho aceitasse Nosso Senhor, por esmola e somente pedia em remuneração,
que lhe mandassem dizer logo, quatro capelas de Missas: duas pelas almas de
seus pais e parentes defuntos e duas pelas almas dos pais e parentes defuntos
de sua companheira Antónia Francisca de
Almeida.»[iv]
Não estou certo de que o actual andor do Senhor
dos Passos, peça tão emblemática da Semana Santa, pelo menos para aqueles que o
carregam na procissão de Quinta-feira Maior, seja o mesmo a que a acta de 8 de
Dezembro de 1736 se refere. Para ter certezas, ter-se ia que fazer, no mínimo,
um exame à madeira de que é construído e estudar a talha. Porém, um convencimento
tenho e posso partilhá-lo: o estilo do andor é “D. João V” e, portanto,
enquadrado na época faustosa contemporânea da descoberta do «ouro e das pedras
preciosas» no Brasil
Se assim for, será mais uma extraordinária peça com 279 anos que vem enriquecer
substancialmente o património cultural, histórico e material da nossa Santa
Casa da Misericórdia, instituição marcante e a mais antiga do concelho que
desde a sua fundação presta serviços relevantes às gerações que a ela têm
recorrido ao longo dos séculos.
Mas, para além disto, a Igreja da Misericórdia tem mais, mas muito mais,
para nos surpreender em termos de História!
[i]
- ANTT (Digitarq) -
Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações Incompletas, doc. 1292
[ii] - Inventário dos Lugares de Memória do Tráfico Atlântico de Escravos e da
História dos Africanos Escravizados no Brasil Local: Ilha de Itaparica –
Pontinha/Vera Cruz – BA
[iii] - AHSCME – Livro dos Acórdãos, pág. 92
[iv] - AHSCME –
Livro dos Acórdãos, , pág. 99v e 100
(Publicado no jornal digital "Esposende Acontece, em 24 de Junho de 2015).
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