segunda-feira, 19 de outubro de 2015

               
CALAFATES DE GANDRA NA RIBEIRA DAS NAUS.

Gandra é, de entre as freguesias do nosso concelho, uma das que mais esteve ligada à indústria da construção naval , não só a que desde os finais do séc. XIV se instalara na foz do Cávado mas também à dos dois grandes centros nacionais, a Ribeira das Naus, em Lisboa e a Ribeira do Ouro, no Porto. Certamente pela sua proximidade aos estaleiros de Esposende e de Fão, para onde os seus artífices tinham facilidade em se deslocar, Gandra contribuiu grandemente, ao longo dos séculos, com os seus especialistas, muitos deles formados ou “diplomados” nos dois grandes centros já citados.
Eximios carpinteiros navais, calafates e seus mestres, nos séculos XVIII, XIX e XX, eram de Gandra, aliás, na boa tradição dos seus antepassados, que já haviam dado sobejas provas do seu profissionalismo nesta importante arte. E ela continuou a ser importante para a própria localidade, pois, segundo um inquérito de âmbito socio-económico de 24 de Setembro de 1866, grande parte da população de Gandra dedicava-se à profissão de calafate [i]
Altamente protegida, esta arte mecânica era fulcral à nossa economia, porquanto todo o comércio marítimo dependia da boa construção e das condições de estanquicidade, “da quilha à borda” das embarcações e por isso, os seus artífices mais destacados, os Mestres ,tal como os dos carpinteiros navais, eram contemplados com “privilégios”, especificados nas Cartas de Alvará que remontam ao tempo de D. Fernando, mas que não raramente eram actualizados, nomeadamente no tocante a impostos, como os últimos, confirmados por D. Maria I.
Tais privilégios eram dados à Corporação, quando peticionados colectivamente, mas os Alvarás eram passados nominalmente com esses mesmos privilégios expressos, desde o primeiro até à última confirmação, que o interessado utilizava quando lhe era necessário, estivesse onde estivesse em território nacional.
É o caso de João Manuel., filho de Miguel Manuel e de Úrsula Gonçalves, de Gandra, mestre calafate da Ribeira das Naus e da Ribeira do Ouro, que em 11 de Abril de 1748, fez registar na Câmara Municipal de Esposende a Carta dos seus “privilégios” para se eximir ao cargo de juiz de sub-sino da sua freguesia – S. Martinho de Gandra - para o qual havia sido nomeado quando prestava serviço em Viana do Castelo, por ordem da El Rei, no calafeto de umas lanchas.[ii]
João Manuel, justificou assim, não poder ocupar tal cargo, pois a sua profissão exigia que estivesse “dia e noite” disponível para o serviço de El Rei.
O percurso de um oficial de calafate não era fácil e o de João Manuel começou, quando seu pai, Miguel utilizou o seu Alvará que lhe dava o direito de poder dar a mesma carreira aos filhos, carreira que também os isentava de ir à guerra.
Tudo começava com uma inscrição no curso...tal como fez João Manuel, que em 20 de Fevereiro de 1709, dirigiu uma petição ao Provedor da Casa da Índia para que lhe fosse passada uma Certidão de Matrícula, documento que foi exarado pelo Escrivão da Provedoria dos Armazéns da Guiné, Índia e Armadas de Sua Majestade onde consta que «a folhas cento e dezasseis do Livro donde se fazem as Escrituras aos oficiais de calafate da Ribeira das Naus, está feita uma, em cinco do corrente, pela qual se obrigou Miguel Manuel, oficial de calafate da Ribeira das Naus, a dar ensino do dito ofício, dentro de cinco anos a um seu moço, por nome João, filho de Miguel Manuel e de Úrsula Gonçalves, natural de S. Martinho de Gandra, Arcebispado de Braga e de idade de dezoito anos, cabelo preto e calvo, olhos pardos e cara grande e larga e acabado de lhe dar os ditos cinco anos lhe prometia ferramenta para trabalhar e um vestido ou três mil reis em dinheiro». [iii]
Miguel Manuel, o pai, tornou a utilizar o Privilégio, para o mesmo efeito e para um outro seu filho que tinha o mesmo nome que o seu.
Gandra, tinha nos princípios do Séc. XVIII, TRÊS MESTRES CALAFATES, a trabalhar na Ribeira das Naus! O pai e dois filhos O pa, Miguel Manuel já vinha exercendo aquela profissão, desde o século XVII. Naquela altura, para ser oficial de calafate, ou seja ser Mestre, tal como João Manuel pretendia, era preciso ter uma verdadeira “formatura” de cinco anos. Mas isto era em 20 de Fevereiro de 1709 ...
Outros se lhes seguiram, como Manuel Francisco do Paço, que foi vereador da Câmara Municipal, nos primeiros anos do Séc. XIX. Era também um calafate de renome, bem como seu neto Francisco do Paço, que acabou por se fixar em Esposende onde casou com senhora de uma família com negócios na construção naval.
Em 1856, o mestre calafate de Gandra, Manuel Gomes dos Santos «pediu escusa de ser encarregado de apresentar o S. Jorge nas quatro funções reais», quadro incluído nas festas do Corpus Christi.[iv]
José Francisco Alves, que trabalhou nos estaleiros de Fão ate 1906 e que depois da sua morte foi substituído por outro mestre, Bento Ferreira Brás, foram dos últimos grandes mestres calafates de Gandra.
Marinhas, Belinho e São Bartolomeu, tal como Fonte Boa, tiveram também muitos e bons executantes nesta profissão, que honraram a indústria da construção naval do concelho de Esposende, tendo alguns “passado” paras os estaleiros navais de Viana do Castelo e do Ouro, no Porto, a partir de 1947, quando, praticamente, acabaram os estaleiros da foz do Cávado.




[i] Neiva, Dr .Manuel Albino Penteado, in “O concelho de Esposende no séc. XIX” in Boletim Cultural de Esposende, nº 7/8 de Dezembro de 1985,pág.18.
[ii] Felgueiras, José – “Sete Séculos no Mar”- Edição do Forum Esposendense,2010.
[iii] AHCME – Registo do Privilégio dos Mestres Calafates concedidos a João Manuel da freguesia de Gandra, termo desta vila de Esposende-Livro de Registos de Privilégios -1748 (23 páginas).
[iv] Felgueiras, José – “Sete séculos no Mar” – Edição do Forum Esposendense,2010.
Abade de Fão – capitão de uma nau em 1438
                                                                          
                                                                                         Por : José Felgueiras

A pesca marítima foi uma actividade importantíssima para as gentes do território onde mais tarde se veio a constituir o concelho de Esposende, apesar da pesca fluvial ter tido também relevante significado no ponto de vista económico e alimentar, nomeadamente para as povoações ribeirinhas.
A pescaria do mar, desenvolvida logo após a independência do Condado Portucalense e depois de controlada a pirataria berberesca, foi, indubitavelmente, a verdadeira escola da experimentação da navegação oceânica onde os pescadores se exercitaram e se tornaram grandes marinheiros. Foi nesta actividade que aprenderam a conhecer o mar junto à costa ou mais ao largo, os seus fundos, as correntes e a dominância dos ventos.
Fão, com uma situação geográfica privilegiada, pois ficava na embocadura do Cávado, cedo se manifestou como centro de actividade piscatória antes de todas as outras localidades, incluindo Esposende. Rezam as Inquirições que Fão, já em 1220 tinha um pequeno núcleo de habitantes que se dedicava à pesca «illi qui vadunt piscari», mas existem outras fontes a provar, que desde muito cedo, gente de Fão ou a ela ligada, andou no alto mar, ocupando lugares de topo na hierarquia naval do tempo.
Portanto, não é de admirar que apareçam de vez em quando, referências a homens de Fão, que deixaram o seu nome ligado a feitos de relevância nacional, como é o caso presente.
Os fangueiros de antanho, foram excelentes executantes das artes de marinharia, a pontos de terem deixado o nome da sua terra ligado a uma “costura”de forma oval, ainda hoje empregada como encapeladura ou como componente de uma escada de corda a que deram o nome de «costura de Fam», também conhecida por «boca de lobo».
Por isso não é de admirar que, em determinadas circunstâncias, os grandes senhores da altura requisitassem os seus serviços ou os integrassem nas suas aventuras, fossem elas em terra ou no mar.
No entanto, pode parecer estranho o facto de estarmos a tratar aqui de um Padre que também era náutico; mas, a verdade é que não era assim tão raro, naquela época, vermos clérigos a comandar navios!
Como aparece então este nauta fangueiro, integrado na logística de uma viagem tão importante como imponente?
Embora «filho famílias», João Vicente, tal como os simples mortais da sua terra, teve logo na sua juventude os primeiros contactos com o rio e o mar costeiro que praticamente o cercavam; duas escolas onde, certamente, aprendeu os rudimentos da arte de navegar, aperfeiçoando-os depois no mar alto.
Filho de legítimo matrimónio, estudou e ordenou-se em Coimbra no ano de 1435,com «licencia sui superiores presentatus ad titulum sui patrimonii, examinandus per suum superiorem». E daí, para ser imediatamente “nomeado” abade da sua terra natal, que acabava de ser integrada no Condado de Barcelos, bastaria um pequeno sinal do seu poderoso Duque…
 João Vicente é contemporâneo da transferência de Fão da Jurisdição de Guimarães para o Julgado de Faria patrocinada por D. João I, que por carta de 14 de Outubro de 1409, doou aquela localidade a seu filho, D. Afonso, conde de Barcelos (mais tarde o 1º Duque de Bragança), ficando assim Fão a pertencer a esta Casa.
Muito provavelmente a família de João Vicente era das relações do Conde de Barcelos e ele próprio amigo ou conhecido de seu filho, o Conde de Ourém, D. Afonso, que fez várias viagens ao estrangeiro em representações diplomáticas, entre 1429 e 1458
O Conde de Ourém sendo, portanto, filho do Conde de Barcelos (1º Duque de Bragança) e de D. Brites Pereira, filha de D. Nuno Alvares Pereira, era neto de D. João I, pelo lado do pai e de D. Nuno, pelo da mãe.
Embora fosse educado em Chaves, sede na altura, da Casa de Bragança, nem por isso a sua educação mereceu menores cuidados; «decerto, contactou com os melhores mestres, pois pelo que se conhece é legítimo afirmar que foi um dos mais cultos da sua geração.» Teve assim, uma educação que ombreava com a dos filhos de D. João I, seus tios,- a ínclita Geração - que eram praticamente da sua idade.
Numa dessas viagens, a segunda que fez, teve Basileia como destino. Era nessa cidade que decorria o Concílio da Igreja Católica e o rei D. Duarte, seu tio, procurava aí obter autorizações especiais do Papa para os reis portugueses, para aos cavaleiros das Ordens de Avis e de Cristo e a bula de cruzada para a guerra em África.
A comitiva, que integrava altas figuras da Igreja e grandes letrados em direito canónico e civil, incluía o bispo-conde do Porto D. Antão Martins, saiu de Lisboa em 11 de Janeiro de 1436, fazendo a viagem por terra.
Dessa viagem foi feito um diário pormenorizado dos locais por onde passavam e as distâncias percorridas diariamente. Chegaram as Castela 5 dias depois. Atravessaram toda a península em 10 semanas, até ao Mediterrâneo. Entraram em  Barcelona onde foram muito bem recebidos e aí esperaram 6 semanas pelos elementos da realeza que vinham por mar, tempo aproveitado para contactos importantes que visavam apoios para a campanha de África que estava a ser preparada pelos infantes irmãos de D. Duarte: D. Henrique, D. Pedro e D. Fernando.
Seguiram depois para Itália, para o porto de Livorno, tendo, para o efeito, o conde e o bispo, juntamente com outras ilustres figuras, embarcado numa galé em 24 de Maio.
Alguns cavaleiros, porém, necessitavam de levar os seus cavalos e por isso tiveram que viajar mais para norte, até S. Fileu, porto onde embarcaram numa nau vinda de Lisboa, capitaneada pelo citado Abade de Fão.
A viagem, foi assim, feita separadamente, num mar perigoso, infestado de corsários, de inimigos e milhentos perigos, mas todos acabaram por passar discretamente, fazendo-se até passar por galegos.
No dia 22, partiram para Bolonha, onde foram recebidos com grande entusiasmo e quatro dias depois da chegada, o Papa recebeu-os.
É assim, pelo relato desta viagem, que chega até nós a referência a este importante personagem fangueiro, cuja família era de «estirpe» e da confiança do 1º Duque de Bragança, seus fiéis servidores, dos tais que ele punha a liderar nas terras das suas possessões. Veja-se o que um seu sucessor, embora mais tarde, o Duque D. Jaime, fez em Esposende para a expedição a Alcácer Quibir. Além dos «20 homens a pé» que recrutou, levou ainda a nata da fidalguia da terra, Gaspar de Barros da Costa e seu filho Gregório  (seu amigo pessoal), que morreu na batalha.
Este abade-navegante, tinha ainda a vantagem de ser letrado, o que, para além do respeito que o seu estatuto impunha, aliado a alguma coragem, servia na perfeição para integrar em lugar de responsabilidade uma empresa tão grandiosa como foi a viagem desta embaixada a Basileia para obter do Papa o que D. Duarte tanto almejava.
Eis pois, mais um fangueiro para a História de Fão e do nosso Concelho!  

Consultas:
-Ribeiro, Gonçalo Morais – Viagens do Conde de Ourém (1429-1458)
-Lusitânia Sacra, 2ª série, Tomo 13-14 (2001-2002).
- Barradas, Alexandra Leal, in Revista “Medievalista”, ano 2, nº 2, 2006 – FCSH- Instituto de Estudos Medievais- UNL

Esposende Março de 2015     PS. Por opção, o autor escreve segundo a antiga ortografia.

(Publicado no jornal digital "Esposende Acontece) em Maio de 2015)