segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Abade de Fão – capitão de uma nau em 1438
                                                                          
                                                                                         Por : José Felgueiras

A pesca marítima foi uma actividade importantíssima para as gentes do território onde mais tarde se veio a constituir o concelho de Esposende, apesar da pesca fluvial ter tido também relevante significado no ponto de vista económico e alimentar, nomeadamente para as povoações ribeirinhas.
A pescaria do mar, desenvolvida logo após a independência do Condado Portucalense e depois de controlada a pirataria berberesca, foi, indubitavelmente, a verdadeira escola da experimentação da navegação oceânica onde os pescadores se exercitaram e se tornaram grandes marinheiros. Foi nesta actividade que aprenderam a conhecer o mar junto à costa ou mais ao largo, os seus fundos, as correntes e a dominância dos ventos.
Fão, com uma situação geográfica privilegiada, pois ficava na embocadura do Cávado, cedo se manifestou como centro de actividade piscatória antes de todas as outras localidades, incluindo Esposende. Rezam as Inquirições que Fão, já em 1220 tinha um pequeno núcleo de habitantes que se dedicava à pesca «illi qui vadunt piscari», mas existem outras fontes a provar, que desde muito cedo, gente de Fão ou a ela ligada, andou no alto mar, ocupando lugares de topo na hierarquia naval do tempo.
Portanto, não é de admirar que apareçam de vez em quando, referências a homens de Fão, que deixaram o seu nome ligado a feitos de relevância nacional, como é o caso presente.
Os fangueiros de antanho, foram excelentes executantes das artes de marinharia, a pontos de terem deixado o nome da sua terra ligado a uma “costura”de forma oval, ainda hoje empregada como encapeladura ou como componente de uma escada de corda a que deram o nome de «costura de Fam», também conhecida por «boca de lobo».
Por isso não é de admirar que, em determinadas circunstâncias, os grandes senhores da altura requisitassem os seus serviços ou os integrassem nas suas aventuras, fossem elas em terra ou no mar.
No entanto, pode parecer estranho o facto de estarmos a tratar aqui de um Padre que também era náutico; mas, a verdade é que não era assim tão raro, naquela época, vermos clérigos a comandar navios!
Como aparece então este nauta fangueiro, integrado na logística de uma viagem tão importante como imponente?
Embora «filho famílias», João Vicente, tal como os simples mortais da sua terra, teve logo na sua juventude os primeiros contactos com o rio e o mar costeiro que praticamente o cercavam; duas escolas onde, certamente, aprendeu os rudimentos da arte de navegar, aperfeiçoando-os depois no mar alto.
Filho de legítimo matrimónio, estudou e ordenou-se em Coimbra no ano de 1435,com «licencia sui superiores presentatus ad titulum sui patrimonii, examinandus per suum superiorem». E daí, para ser imediatamente “nomeado” abade da sua terra natal, que acabava de ser integrada no Condado de Barcelos, bastaria um pequeno sinal do seu poderoso Duque…
 João Vicente é contemporâneo da transferência de Fão da Jurisdição de Guimarães para o Julgado de Faria patrocinada por D. João I, que por carta de 14 de Outubro de 1409, doou aquela localidade a seu filho, D. Afonso, conde de Barcelos (mais tarde o 1º Duque de Bragança), ficando assim Fão a pertencer a esta Casa.
Muito provavelmente a família de João Vicente era das relações do Conde de Barcelos e ele próprio amigo ou conhecido de seu filho, o Conde de Ourém, D. Afonso, que fez várias viagens ao estrangeiro em representações diplomáticas, entre 1429 e 1458
O Conde de Ourém sendo, portanto, filho do Conde de Barcelos (1º Duque de Bragança) e de D. Brites Pereira, filha de D. Nuno Alvares Pereira, era neto de D. João I, pelo lado do pai e de D. Nuno, pelo da mãe.
Embora fosse educado em Chaves, sede na altura, da Casa de Bragança, nem por isso a sua educação mereceu menores cuidados; «decerto, contactou com os melhores mestres, pois pelo que se conhece é legítimo afirmar que foi um dos mais cultos da sua geração.» Teve assim, uma educação que ombreava com a dos filhos de D. João I, seus tios,- a ínclita Geração - que eram praticamente da sua idade.
Numa dessas viagens, a segunda que fez, teve Basileia como destino. Era nessa cidade que decorria o Concílio da Igreja Católica e o rei D. Duarte, seu tio, procurava aí obter autorizações especiais do Papa para os reis portugueses, para aos cavaleiros das Ordens de Avis e de Cristo e a bula de cruzada para a guerra em África.
A comitiva, que integrava altas figuras da Igreja e grandes letrados em direito canónico e civil, incluía o bispo-conde do Porto D. Antão Martins, saiu de Lisboa em 11 de Janeiro de 1436, fazendo a viagem por terra.
Dessa viagem foi feito um diário pormenorizado dos locais por onde passavam e as distâncias percorridas diariamente. Chegaram as Castela 5 dias depois. Atravessaram toda a península em 10 semanas, até ao Mediterrâneo. Entraram em  Barcelona onde foram muito bem recebidos e aí esperaram 6 semanas pelos elementos da realeza que vinham por mar, tempo aproveitado para contactos importantes que visavam apoios para a campanha de África que estava a ser preparada pelos infantes irmãos de D. Duarte: D. Henrique, D. Pedro e D. Fernando.
Seguiram depois para Itália, para o porto de Livorno, tendo, para o efeito, o conde e o bispo, juntamente com outras ilustres figuras, embarcado numa galé em 24 de Maio.
Alguns cavaleiros, porém, necessitavam de levar os seus cavalos e por isso tiveram que viajar mais para norte, até S. Fileu, porto onde embarcaram numa nau vinda de Lisboa, capitaneada pelo citado Abade de Fão.
A viagem, foi assim, feita separadamente, num mar perigoso, infestado de corsários, de inimigos e milhentos perigos, mas todos acabaram por passar discretamente, fazendo-se até passar por galegos.
No dia 22, partiram para Bolonha, onde foram recebidos com grande entusiasmo e quatro dias depois da chegada, o Papa recebeu-os.
É assim, pelo relato desta viagem, que chega até nós a referência a este importante personagem fangueiro, cuja família era de «estirpe» e da confiança do 1º Duque de Bragança, seus fiéis servidores, dos tais que ele punha a liderar nas terras das suas possessões. Veja-se o que um seu sucessor, embora mais tarde, o Duque D. Jaime, fez em Esposende para a expedição a Alcácer Quibir. Além dos «20 homens a pé» que recrutou, levou ainda a nata da fidalguia da terra, Gaspar de Barros da Costa e seu filho Gregório  (seu amigo pessoal), que morreu na batalha.
Este abade-navegante, tinha ainda a vantagem de ser letrado, o que, para além do respeito que o seu estatuto impunha, aliado a alguma coragem, servia na perfeição para integrar em lugar de responsabilidade uma empresa tão grandiosa como foi a viagem desta embaixada a Basileia para obter do Papa o que D. Duarte tanto almejava.
Eis pois, mais um fangueiro para a História de Fão e do nosso Concelho!  

Consultas:
-Ribeiro, Gonçalo Morais – Viagens do Conde de Ourém (1429-1458)
-Lusitânia Sacra, 2ª série, Tomo 13-14 (2001-2002).
- Barradas, Alexandra Leal, in Revista “Medievalista”, ano 2, nº 2, 2006 – FCSH- Instituto de Estudos Medievais- UNL

Esposende Março de 2015     PS. Por opção, o autor escreve segundo a antiga ortografia.

(Publicado no jornal digital "Esposende Acontece) em Maio de 2015)

Sem comentários:

Enviar um comentário