Abade de Fão – capitão de uma
nau em 1438
A pesca marítima foi uma actividade importantíssima para as
gentes do território onde mais tarde se veio a constituir o concelho de
Esposende, apesar da pesca fluvial ter tido também relevante significado no
ponto de vista económico e alimentar, nomeadamente para as povoações
ribeirinhas.
A pescaria do mar, desenvolvida logo após a independência do
Condado Portucalense e depois de controlada a pirataria berberesca, foi,
indubitavelmente, a verdadeira escola da experimentação da navegação oceânica
onde os pescadores se exercitaram e se tornaram grandes marinheiros. Foi nesta actividade
que aprenderam a conhecer o mar junto à costa ou mais ao largo, os seus fundos,
as correntes e a dominância dos ventos.
Fão, com uma situação geográfica privilegiada, pois ficava
na embocadura do Cávado, cedo se manifestou como centro de actividade
piscatória antes de todas as outras localidades, incluindo Esposende. Rezam as
Inquirições que Fão, já em 1220 tinha um pequeno núcleo de habitantes que se
dedicava à pesca «illi qui vadunt piscari»,
mas existem outras fontes a provar, que desde muito cedo, gente de Fão ou a ela
ligada, andou no alto mar, ocupando lugares de topo na hierarquia naval do
tempo.
Portanto, não é de admirar que apareçam de vez em quando,
referências a homens de Fão, que deixaram o seu nome ligado a feitos de
relevância nacional, como é o caso presente.
Os fangueiros de antanho, foram excelentes executantes das
artes de marinharia, a pontos de terem deixado o nome da sua terra ligado a uma
“costura”de forma oval, ainda hoje empregada como encapeladura ou como
componente de uma escada de corda a que deram o nome de «costura de Fam»,
também conhecida por «boca de lobo».
Por isso não é de admirar que, em determinadas
circunstâncias, os grandes senhores da altura requisitassem os seus serviços ou
os integrassem nas suas aventuras, fossem elas em terra ou no mar.
No entanto, pode parecer estranho o facto de estarmos a tratar
aqui de um Padre que também era náutico; mas, a verdade é que não era assim tão
raro, naquela época, vermos clérigos a comandar navios!
Como aparece então este nauta fangueiro, integrado na
logística de uma viagem tão importante como imponente?
Embora «filho famílias», João Vicente, tal como os simples
mortais da sua terra, teve logo na sua juventude os primeiros contactos com o
rio e o mar costeiro que praticamente o cercavam; duas escolas onde,
certamente, aprendeu os rudimentos da arte de navegar, aperfeiçoando-os depois
no mar alto.
Filho de legítimo matrimónio, estudou e ordenou-se em
Coimbra no ano de 1435,com «licencia sui
superiores presentatus ad titulum sui patrimonii, examinandus per suum
superiorem». E daí, para ser imediatamente “nomeado” abade da sua terra
natal, que acabava de ser integrada no Condado de Barcelos, bastaria um pequeno
sinal do seu poderoso Duque…
João Vicente é
contemporâneo da transferência de Fão da Jurisdição de Guimarães para o Julgado
de Faria patrocinada por D. João I, que por carta de 14 de Outubro de 1409, doou
aquela localidade a seu filho, D. Afonso, conde de Barcelos (mais tarde o 1º
Duque de Bragança), ficando assim Fão a pertencer a esta Casa.
Muito provavelmente a família de João Vicente era das
relações do Conde de Barcelos e ele próprio amigo ou conhecido de seu filho, o Conde
de Ourém, D. Afonso, que fez várias viagens ao estrangeiro em representações diplomáticas,
entre 1429 e 1458
O Conde de Ourém sendo, portanto, filho do Conde de Barcelos
(1º Duque de Bragança) e de D. Brites Pereira, filha de D. Nuno Alvares Pereira,
era neto de D. João I, pelo lado do pai e de D. Nuno, pelo da mãe.
Embora fosse educado em Chaves, sede na altura, da Casa de
Bragança, nem por isso a sua educação mereceu menores cuidados; «decerto,
contactou com os melhores mestres, pois pelo que se conhece é legítimo afirmar
que foi um dos mais cultos da sua geração.» Teve assim, uma educação que
ombreava com a dos filhos de D. João I, seus tios,- a ínclita Geração - que
eram praticamente da sua idade.
Numa dessas viagens, a segunda que fez, teve Basileia como
destino. Era nessa cidade que decorria o Concílio da Igreja Católica e o rei D.
Duarte, seu tio, procurava aí obter autorizações especiais do Papa para os reis
portugueses, para aos cavaleiros das Ordens de Avis e de Cristo e a bula de
cruzada para a guerra em África.
A comitiva, que integrava altas figuras da Igreja e grandes
letrados em direito canónico e civil, incluía o bispo-conde do Porto D. Antão
Martins, saiu de Lisboa em 11 de Janeiro de 1436, fazendo a viagem por terra.
Dessa viagem foi feito um diário pormenorizado dos locais
por onde passavam e as distâncias percorridas diariamente. Chegaram as Castela
5 dias depois. Atravessaram toda a península em 10 semanas, até ao Mediterrâneo.
Entraram em Barcelona onde foram muito
bem recebidos e aí esperaram 6 semanas pelos elementos da realeza que vinham
por mar, tempo aproveitado para contactos importantes que visavam apoios para a
campanha de África que estava a ser preparada pelos infantes irmãos de D. Duarte:
D. Henrique, D. Pedro e D. Fernando.
Seguiram depois para Itália, para o porto de Livorno, tendo,
para o efeito, o conde e o bispo, juntamente com outras ilustres figuras,
embarcado numa galé em 24 de Maio.
Alguns cavaleiros, porém, necessitavam de levar os seus
cavalos e por isso tiveram que viajar mais para norte, até S. Fileu, porto onde
embarcaram numa nau vinda de Lisboa, capitaneada pelo citado Abade de Fão.
A viagem, foi assim, feita separadamente, num mar perigoso,
infestado de corsários, de inimigos e milhentos perigos, mas todos acabaram por
passar discretamente, fazendo-se até passar por galegos.
No dia 22, partiram para Bolonha, onde foram recebidos com grande
entusiasmo e quatro dias depois da chegada, o Papa recebeu-os.
É assim, pelo relato desta viagem, que chega até nós a
referência a este importante personagem fangueiro, cuja família era de
«estirpe» e da confiança do 1º Duque de Bragança, seus fiéis servidores, dos
tais que ele punha a liderar nas terras das suas possessões. Veja-se o que um
seu sucessor, embora mais tarde, o Duque D. Jaime, fez em Esposende para a
expedição a Alcácer Quibir. Além dos «20 homens a pé» que recrutou, levou ainda
a nata da fidalguia da terra, Gaspar de Barros da Costa e seu filho Gregório (seu amigo pessoal), que morreu na batalha.
Este abade-navegante, tinha ainda a vantagem de ser letrado,
o que, para além do respeito que o seu estatuto impunha, aliado a alguma
coragem, servia na perfeição para integrar em lugar de responsabilidade uma
empresa tão grandiosa como foi a viagem desta embaixada a Basileia para obter
do Papa o que D. Duarte tanto almejava.
Eis pois, mais um fangueiro para a História de Fão e do nosso Concelho!
Consultas:
-Ribeiro, Gonçalo Morais –
Viagens do Conde de Ourém (1429-1458)
-Lusitânia Sacra, 2ª série,
Tomo 13-14 (2001-2002).
- Barradas, Alexandra Leal,
in Revista “Medievalista”, ano 2, nº 2, 2006 – FCSH- Instituto de Estudos
Medievais- UNL
Esposende Março de 2015 PS. Por opção, o autor escreve segundo a antiga
ortografia.
(Publicado no jornal digital "Esposende Acontece) em Maio de 2015)
Sem comentários:
Enviar um comentário